sexta-feira, 16 de agosto de 2013

ARTIGO 26




Tal qual um pássaro libertino, voando pelos becos da Fortaleza da Belle Époque, a distribuir o pão da cultura como alimento para as almas esguias no deserto do obscurantismo, eis como inicia a homenagem que o cantor e compositor Ednardo dedicou, em forma de música, à Padaria Espiritual, movimento cultural surgido na capital cearense no final de século XIX, marcado pela ironia, irreverência e senso crítico, além do sincretismo literário. ("Olha o padeiro entregando o pão; De casa em casa entregando o pão"). 
Como a atrevida aventura contava com alguns poucos desafetos – sobretudo aqueles para quem a instrução do povo sempre foi algo assustador –, havia o receio de se entregar o "Pão" naquela casa e ser alvo de indecorosos desaforos... ("Menos naquela, aquela, aquela, aquela não; Pois quem se arrisca a cair no alçapão?") 
O "Pão" era o jornal da Padaria Espiritual, entregue de casa em casa pelos próprios "padeiros" – jovens escritores, pintores e músicos, reunidos num levante cultural contra a burguesia, o clero e tudo o mais que representasse a manutenção do status quo. Batendo as asas e dançando, nos passos de uma quadrilha junina (Anavantu, anavantu, anarriê), o pássaro-padeiro distribuía seu jornal, a cantarolar os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, tão cultuados pela Revolução Francesa, mas menosprezados acintosamente, na prática, pela burguesia já vitoriosa.
O "freguês" agradecia o "Pão" recebido, em francês, tão à moda na época (Merci bocu, merci bocu – Obrigado, obrigado), e o padeiro respondia, inicialmente em francês (Nê pa dê qua, nê pa dê qua – De nada, de nada), arremedando um passo de balé (padê burrê), para depois arrebatar, já em português, "Não há de que!"
O pássaro-padeiro, amante das coisas da natureza, estava sempre a procurar novas ideias para amassar como ingrediente do saboroso "Pão". ("Rua Formosa, moça bela a passear; Palmeira verde e uma lua a pratear; Um olho vivo, vivo, vivo a procurar.")
O artigo 26, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dispõe que: "Todo ser humano tem direito à instrução." A visionária Padaria Espiritual, muito antes, já se dedicava à distribuição da cultura, especialmente a partir da valorização dos elementos regionais, nada obstante o grito de alerta ainda não tenha sido escutado pela maioria das pessoas, que preferem, ainda hoje, por desconhecimento, as coisas das culturas alheias dominantes. (Você já leu o artigo 26; Ou sabe a história da galinha pedrês; E me traduza aquele roque para o português; A ignorância é indigesta pro freguês.)
Cada pessoa deve ser livre, como o sanhaçu, pássaro rebelde das nossas matas; livre para cantar e voar pelo céu, mas sempre nas asas da educação, porque sem instrução e sem cultura se é presa fácil da manipulação do sistema impiedoso. (Você queria mesmo é ser um sanhaçu; Fazendo fiu e voando pelo azul; Mas nesse jogo lhe encaixaram, e é um loucura; Lá vem o padeiro, pão na boca é o que te cura.")

32 comentários:

Unknown disse...

Parabéns, pelo esclarecimento, Eliton Meneses. Queria saber a tradução das palavras em francês, mas jamais pensava que tivesse todo o significado da rebeldia pela educação, por trás das letras. Uma vez mais, parabéns pelos esclarecimentos.

Unknown disse...

G-E-N-I-A-L!!!Sempre fui muito fã do trabalho de Ednardo. E esta música batia como poesia pura, onde fazia conjecturas mil....saber o real significado vem como um presente, 33 anos depois de ouvi-la pela primeira vez.

Folly disse...

Muito inteligente essa canção, conheço desde minha infância, e por curiosidade resolvi buscar o porquê da letra, e estou satisfeito com o que encontrei, gosto demais das canções de EDNARDO

INIMIGO Nº 1 disse...

genial esse Ednardo

Unknown disse...

Artigo 26 do "Estatutos da Padaria Espiritual"

"26) São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros - o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente.

...Amassado e assado na "Padaria Espiritual", aos 30 de Maio de 1892."

Pedro Lucas disse...

Fantástico tanto a letra a musica e os esclarecimentos..

Unknown disse...

Obrigado Elinton e Ednardo

Cícera Vidal disse...

Que letra! E que maravilha de esclarecimento, é como se uma cortina fosse aberta na nossa cabeça. Muito obrigada.

A disse...

Muito obrigada por este post. Ainda que a poética de Ednardo soasse incrível, eu não estava conseguindo chegar no âmago da questão. Valeu!!!

Unknown disse...

Ednardo e a gente do Ceará eram o que de mais belo que tinha a desafiar o stablisment cultura, e esta letra foi o dedo na ferida para que sentissem que havia reaçao

Unknown disse...

Exatamente isso que pensei: na minha infância. Adorava essa música. Agora adoro mais ainda!

Gilmar Ventura disse...

Fantástico, super valeu, que mensagem rica e culta traz a musica, demais!!!!!

Eduardo Macedo disse...

Excelente a debulha da letra. Até então achava que o artigo mencionado era o do estatuto da Padaria.

Marcos Viana disse...

Maravilhosa canção. Faz muito bem para a alma. É eterna, como tudo que é bom.

Jorge Otavio disse...

E é também. Tanto do Estatuto quando da Declaração. Ambos cabem bem na definição do art. 26 mas o relativo a Declaração soa mais contemporâneo.

Anônimo disse...

Estou lendo esse texto maravilhoso e me surpreendeu a história dessa música maravilhosa. Escuto ela sempre. Nasci em 1974 em Fortaleza , Ceará. Sou escritor e pró cultura e educação.

J disse...
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J disse...
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vanina disse...

Amei o artigo.

Gracielle Laís disse...

Obrigada pelo esclarecimento, estudar sobre a Padaria Espiritual e entender melhor o significado dessa canção é maravilhoso. Viva Ednardo!, viva a literatura cearense!

Cristiano disse...

Admirador de Belchior que sou, encontrei a música catada por Ele Belchior e Amelinha junto é claro com o Ednardo que produziu esta pérola.

Curioso e ignorante sobre o que se tratava e vim pesquisar, o resultado não poderia ter sido diferente, acabei descobrindo mais esta força da rica cultura Cearense que passo a replicar.

E como estamos necessitando hoje dessas padarias espirituais, enquanto nosso povo está tendo que ser alimentado da fome física que o compele minguar a prato de comida.

Agradecido pelo esclarecimento aqui postado, muitíssimo obrigado.


Cristiano - Fpolis - SC - Brasil

Eliatan disse...

Não esclareceu a estória da "galinha pedrês". No Ceará, existe a estória da "galinha pedrês, que deu um peido prá vocês três", ou que "deu um peido e pariu nos três". Será que Ednardo não se referia ao "triunvirato" do golpe militar de 64, conhecido como "os três patetas", almirante, general e brigadeiro chefes das três armas que substituíram
o ditador falecido Costa e Silva?

ESTEVAO disse...

A Dominação, o Obscurantismo são constantes na história da Humanidade. Felizmente, também, quase sempre há "Padeiros" a nos alimentar e iluminar.
O Brasil de 2021 é um exemplo.
Nobre Ednardo, Merci Bocu, aliás, Muito Obrigado.

Unknown disse...

Parabéns pela ilustração do conteúdo. Sou carioca e descobri essa música por um acaso e acabei me apaixonando no primeiro instante.Fui pesquisar e me aprofundar sobre a letra, descobri esse artigo.
Parabéns pelo trabalho.

Professor disse...

En avant tous - Todos avançando
En arrière - Recuando
Ne pas de quoi - Não há de quê
Pas de bourré - Cumprimento elegante em um passo de ballet
Igalité, Fraternité e liberté - igualdade, liberdade e fraternidade ( ideais da Revolução Francesa.
Merci bocoup- Muito obrigado.

Bem...se não esqueci das aulas de francês lááá dos anos 80, é mais ou menos esse tradução aí.

Grande Ednardo!
Gra

Professor disse...

Essa*

Professor disse...
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Valmir disse...

Sensacional! Cheguei aqui através de uma citação ao Ednardo no twitter. Dei um Google sobre a música artigo 26 e encontrei esta explicação sobre a letra. Fiquei maravilhado! É incrível como a arte também é um registro da história. Obrigado Elinton! Obrigado Ednardo!

Valmir disse...

Agora vou pesquisar sobre a Padaria Espiritual

Anônimo disse...

MARAVILHOSA! MUITO BOM PODER ENTENDER MELHOR O RECADO DO POETA.

juca vicentin disse...

muito legal mesmo , esclarecedor e estarrecedor !!!! obrigado

Anônimo disse...

Que maravilha de esclarecimento. Músico que sou há quase 60 anos e , pasmem, ainda não havia ouvido essa pérola da canção de Edinardo, *Artigo 26*, mas assim que agora acabei numa interpretação conjunta Amelinha/Edinardo/Belchior, corri descobrir o sentido. E agora descubro mais esse movimento cultural de outrora na bela Fortaleza... Sou norte-paranaense, mas acho que, agora os nortistas e nordestinos, há pouca gente que gosta mais da cultura do Norte e do Nordeste do que eu... Enfim, parabéns mais uma vez pelo belo esclarecimento da origem da canção "Artigo 26". Cada dia tenho mais orgulho de nosso amado Brasil!