terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O POVO BRASILEIRO


"Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto da nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária." (Darcy Ribeiro. O povo brasileiro. Companhia de Bolso. 13.ª reimpressão. 2013. p. 108)

DESACATO NÃO É CRIME


Depois de um renhido bate-boca entre a defensora pública e o cidadão, que quase culminou em voz de prisão e condução para a Delegacia de Polícia, a defensora pública, então coordenadora do Núcleo, imprimiu um cartaz com o teor do art. 331 do Código Penal, em letras garrafais, e colou por todo o Núcleo, inclusive nos gabinetes dos três defensores públicos. 

Código Penal. 
Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

Quando cheguei no dia seguinte, deparei perplexo com o cartaz na porta da minha sala e, antes de saber de quem partira a ideia de tamanho desatino, o rasguei e joguei no lixo...

Em 15.12.2016, a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou atípica a conduta descrita como crime de desacato à autoridade, por entender que a tipificação é incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). 

O relator do REsp nº 1640084/SP, proposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ressaltou que: "A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário. (...) A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo." (cf. REsp 1640084/SP)

sábado, 28 de janeiro de 2017

TODOS E TODAS


Toda língua carrega consigo uma forte carga ideológica. No alemão, que enfatiza a fertilidade inerente ao gênero feminino, o sol é die Sonne ("a sol"), porque o sol produz luz, gera vida, sendo tratado como feminino, o gênero mais relevante da natureza, ao passo que a lua é der Mond ("o lua"), porque a lua não tem luz própria, não produz luz, não gera vida, logo, é um ser masculino, um ser, digamos, de segunda categoria.    
Nas línguas neolatinas, como o português, ocorre o oposto. A ênfase é sempre dada para o masculino. O sol é masculino; a lua, feminino. O gênero prevalecente é o masculino. Se há um homem entre nove mulheres, deve-se referir ao conjunto como todos e não todas, porque esse único homem prevalece em face das nove mulheres. Essa é a herança linguística que recebemos de tempos imemoriais. Por sorte, a língua é dinâmica e, no processo atual de afirmação feminina, tem sido cada vez mais comum não se falar apenas em todos quando, em meio ao todo, há também mulheres. Nesse caso, tem-se dito, de forma bastante salutar, todos e todas, ou, melhor ainda, todas e todos, como uma forma de afirmar a condição feminina, antes apenas subjacente no masculino todos. 
Há quem critique esse todos e todas, talvez avesso à afirmação feminina, sustentando que esse todos não teria conotação de gênero e, portanto, não encerraria preconceito linguístico; no entanto, todos é, inegavelmente, uma palavra masculina que traz consigo uma opção preferencial pelo masculino, não custando nada, na dinâmica da língua, sobretudo neste momento histórico de tantas afirmações necessárias, enfatizar o gênero feminino, dizendo-se todos e todas, ou, melhor ainda, todas e todos.  
E se for para se fazer uma opção preferencial, que se opte pelo todas (todas as pessoas) e não pelo todos (todos não sei o que, homens, seres humanos ou homens e mulheres)...
Portanto, boa noite a todas! Todas as pessoas que leram este texto!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

GINCANA


Com a arquibancada lotada, Tibúrcio aquecia para a final do futebol de salão da gincana. Defenderia a equipe amarela. Na sua primeira jogada, pisou na bola e foi ao chão. A torcida, discretamente, ensaiou um coro: 
– Uh! Uh! Uh!
– Deve ser a torcida azul querendo me desconcertar. – Pensou consigo. 
Aos três minutos de partida, Tibúrcio fez um lançamento na medida e Wilson arrematou para o gol.
Na comemoração, Tibúrcio ouviu da torcida muito claramente alguém gritar:
– Belo lançamento, Banana!
Nada tirava tanto Tibúrcio do sério quanto aquele apelido de Banana. Daí em diante, nosso ala esquerdo passou a observar com atenção um alvo em meio à torcida.   
Aos seis minutos teve uma chance clara de gol e, antes mesmo do chute, cobriram-lhe de:
– Uh! Uh! Uh!
Desperdiçou a chance de aumentar o placar. A impressão que teve foi de que o coro não fora entoado apenas pela torcida azul, mas por toda a arquibancada. 
Aos dez minutos, Tibúrcio levou um drible desconcertante e a equipe azul chegou ao empate. Da arquibancada alguém protestou:
– Arre égua, Banana! Entre a saia!
Antes de terminar o primeiro tempo, a equipe amarela teve um pênalti a seu favor e Tibúrcio se apresentou para cobrá-lo. Toda a arquibancada explodiu num sonoro:
– Uh! Uh! Uh!
Tibúrcio tomou distância do meio da quadra e disparou um bicudo que fez a bola acertar uma porta do outro lado do quarteirão. Alguém da torcida imediatamente murmurou:
– Oh, Banana ruim do cão!
Desolado, nosso ala pensou em não voltar para o segundo tempo, mas, por insistência do técnico, resolveu continuar. 
No começo do segundo tempo, a equipe azul virou a partida e alguém da arquibancada bradou:
– Tira o Banana!
O técnico resolveu não tirá-lo. Até parece que adivinhava o que viria a acontecer. Na metade do segundo tempo, Tibúrcio driblou na sequência três jogadores adversários e enfiou um chutaço no travessão, enquanto a torcida inteira bradava:
– Uh! Uh! Uh!
A partir daí, sempre que Tibúrcio tocava na bola, o coro ensurdecedor da torcida o acompanhava. 
– Uh! Uh! Uh!
Tibúrcio continuava a mirar volta e meia um ponto fixo na multidão. 
A cinco minutos do fim da partida, a equipe amarela empatou. Tibúrcio salvou uma bola em cima da linha do seu gol, fez um lançamento longo e Joventino arrematou para o gol. Metade da arquibancada explodiu de alegria. E alguém comentou:
– Metade do gol foi do Banana!   
A partida já parecia caminhar para os pênaltis, quando Tibúrcio, a um minuto do apito final, desarmou um adversário no meio da quadra e acertou dali mesmo um bicudo forte no ângulo, decretando a vitória da equipe amarela. A torcida inteira, azul e amarela, ergueu-se eufórica na arquibancada, todos num só coro:
– Uh! Uh! Uh!
Em meio ao coro, alguém tentou puxar um aplauso:
– Banana! Banana! Banana!
Tibúrcio vibrou ensandecido com o gol, quase foi às lágrimas de tanta emoção, mas, em meio a toda aquela euforia, ao ouvir alguém começar a puxar um coro com o seu apelido, mudou imediatamente de aspecto, dirigiu-se àquele ponto fixo que observara durante a partida, subiu a arquibancada, puxou pelo braço o seu vizinho de trabalho no Mercado, levou-o até a entrada da quadra, empurrou-o para fora e esbravejou:
– Vai cuidar da tua quintada, beiço de jumento!

domingo, 22 de janeiro de 2017

SONETO XIII


Muitas marcas percorrem o seu rosto;
Uma cruz carregada a vida inteira,
Pela estrada encoberta de poeira,
Ruminava soturno o seu desgosto.

Assumira na vida ser oposto;
 Desterrado da farsa lisonjeira;
 Não parava diante de barreira, 
Sob o lume apagado do sol-posto.

Nunca fora à procura de encosto;
No ocaso brandia uma bandeira,
Mesmo tendo acordado indisposto.

Nada havia escrito na soleira;
 Procurava acudir, com muito gosto,
 Quem estava ao seu lado na trincheira.

Eliton Meneses

domingo, 15 de janeiro de 2017

O POETA


Folheando um livreto, o indolente rapaz perguntou ao dono da livraria: 
– O senhor leu o meu trabalho?
– Ainda não! – Respondeu friamente o livreiro, com cara de quem não entendera a pergunta.
Parecia sob efeito de um sossega-leão. Tinha movimentos lentos e olhar vazio. Parecia familiar. Algum colega de estudo. Difícil recordar. Baixo, cabelo grisalho, um bucho que era uma coisa medonha... No caixa, mais de perto, deu para notar que tinha uns quarenta anos e que não parecia regular bem do juízo. Não obstante um vago ar de bem-nascido, a roupa era surrada e o suor exalava um cheiro desagradável.
Na fila do caixa, esbarrou em mim, pediu desculpas e, olhando-me nos olhos, disse:
– Acho que já nos conhecemos, não?!
– Também lhe achei familiar.
– Da Faculdade de Direito...
– Ah, da Faculdade de Direito! Lembro-me agora! Seu nome é...
Não era possível! Aquele sujeito que cantarolava sozinho "As Curvas da Estrada de Santos" no intervalo: "Se você pretende saber quem eu sou...". Quanta diferença! Não era um aluno brilhante. Parecia mesmo alheio ao Direito. Interessava-lhe mais a poesia já naquela época. Encontrei-o nos primeiros semestres. Não sei se concluiu o curso.
– Evaldo. 
– Ah, Evaldo. Esqueci o nome, não a pessoa! Ainda faz poesia, amigo?
– Sim. Este livro que estou comprando é de minha autoria. Chama-se: "À sombra do cajueiro." Muito bom. Este era o último disponível numa livraria. A edição acaba de se esgotar.
– Muito interessante. Você teve a sorte de esgotar o seu próprio livro...
– Mas a situação não é fácil, amigo. Pouca gente lê. As editoras não se preocupam com poesia de qualidade. Temos que mendigar nas livrarias. Essa gente só pensa no lucro.
– Você tem outros livros publicados?
– Enviei dois para várias editoras, mas até agora não tive resposta. Por enquanto só mesmo "À sombra do cajueiro." Aliás, tome, dê um olhada!
O livro tinha apenas setenta e oito páginas. Os versos não passavam de umas poucas palavras enfileiradas na vertical, sem métrica, sem rima e sem musicalidade, confusos que nem a cabeça do autor.
Devolvi-o e pensei em perguntar sobre uma possível atividade jurídica do poeta, mas relutei.
– Onde você mora, poeta?
– No Cocó.
– Ah, moro aqui perto. 
O Cocó é a área mais cara da cidade. Devia morar com os pais, pensei.  Normalmente os ex-colegas de faculdade só contam vantagem. Evaldo era o primeiro a contar dificuldades. Estava precocemente velho, muito gordo e com o juízo em frangalhos.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

SONETO XII


Todos foram reféns das artimanhas 
Deste tempo sombrio de tanto medo.
Todo mundo precisa ficar quedo,
Com um frio correndo nas entranhas.  

Muitos querem fugir para as montanhas;
Outro tenta esconder o seu segredo.
Quase todos em busca de um degredo,
Onde possam forjar suas façanhas.   

Um amigo correu terras estranhas,
Pela sombra miúda do arvoredo,
Desviando o riacho das piranhas.

Acabou esbarrando num rochedo,
Envolvido na teia das aranhas,
Não voltou pra contar o seu enredo.

Eliton Meneses

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

RERUM NOVARUM


Num curso de língua estrangeira que faço no Benfica, entre a UFC e o IFCE, o professor costuma iniciar a aula com uma enquete sobre temas atuais. Dos dezesseis alunos, uma metade é bem jovem (de quinze a vinte e poucos anos) e a outra é coroa (maiores de trinta e cinco anos). É impressionante como, entre os coroas, as respostas sempre seguem uma tendência progressista, ao passo que, entre os jovens, a tendência é sempre bem reacionária, de um reacionarismo que beira à barbárie. Não sei quem (ou o que) está alimentando o ódio no coração dessa nova geração. O certo é que alguma coisa está fora da ordem. Coroas com cabeça de jovem e jovens com mentalidade de velho.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

CADEIRA DE BALANÇO


Louro herdara do pai o dom de consertar cadeira. Depois da experiência como aprendiz, resolveu dar conta sozinho do negócio. A sua primeira encomenda veio de longe, da Cohab, do outro lado da rua. Eram quatro cadeiras de balanço bem maltratadas. Além da pintura e da soldagem do esqueleto, o macarrão precisava ser todo mudado, cada cadeira com uma cor diferente. 
O artista dedicou toda sua semana àquele trabalho. Era o seu primeiro trabalho próprio. Precisava caprichar. Provar que ajeitava cadeira igual ao pai. Durante todo o dia, até altas horas da noite, Louro pintava, soldava, enrolava macarrão... Se o macarrão não estava bem enrolado, desfazia e começava tudo de novo.
Depois de uma semana de inteira dedicação, deu por pronto o serviço. As cadeiras estavam perfeitas. Novinhas em folha. Ficou certo de que a freguesa ficaria boquiaberta. Decerto iria fazer-lhe elogios e pagar uma boa quantia.
Pensou em cobrar cem cruzeiros. Era um valor justo pela mão de obra e pelo material empregado. Mas resolveu não estabelecer valor. Ficava sem jeito em cobrar e, de todo modo, estava convicto de que a cliente não hesitaria em pagar menos de duzentos cruzeiros, além da gorjeta dos carregadores.
Louro convidou dois meninos para ajudá-lo a levar as cadeiras até a dona e, no caminho, foi-lhes explicando com entusiasmo todo o processo artístico que empregou na restauração das cadeiras. 
– Não é me gabando, não, mas ficou ótimo o serviço!
– Ficou mesmo, oh! Disseram os meninos. 
Quando chegaram ao destino, o artista bateu na porta, a freguesa apareceu com a cara amarrada, pediu que deixassem as cadeiras na sala, sem nenhum elogio, e perguntou friamente:
– Quanto é seu serviço, moço?
Louro, visivelmente desconsertado, pensou em pedir os cem cruzeiros; logo em seguida, pensou em cento e cinquenta, duzentos... Com receio, acabou dizendo:
– Pague o que a senhora achar que eu mereço...
A freguesa virou-lhe as costas, embrenhou na camarinha e logo voltou com duas cédulas na mão. Louro recebeu-as nervoso e, sem atentar no valor recebido, saiu rápido, entre contente e curioso.
– Boa tarde, senhora!
Dez passos adiante, já na rua, Louro estacou, pálido, e mostrou as notas para os meninos. 
– Olha só o que essa rapariga pagou! Vinte cruzeiros! Isso não paga nem o macarrão! Arre! Dá vontade de voltar lá e dar essa mixaria de esmola pra ela... Diabo miserável!
A despeito das lamentações e das ameaças, a caminhada prosseguiu, até que, chegando em casa, mais sereno, Louro se despediu dos meninos e, agradecendo a companhia e o serviço, deu a cada um dez cruzeiros.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O SER E O TEMPO


– O tempo não existe, filho!
– Não!?
– Não! Para Albert Einstein: "(...) esta separação entre passado, presente e futuro é somente uma ilusão."
– E essa sua cara engelhada, pai, é obra de quem?